segunda-feira, 24 de junho de 2013

A fotografia como objeto de memória

por: Mary Del Priore

Hoje, um fato é incontestável: a fotografia, em suas múltiplas formas, se afirma cada vez mais como
um modo de expressão, de informação e de comunicação, íntegra, essencial e específica. Nós a
enxergamos em toda a parte sem, muitas vezes, enxergá-la realmente. Olhamos, sem ver. Ao longo
das páginas da imprensa cotidiana e das revistas, a fotografia contribui tanto para o conhecimento
dos fatos quanto para compor o visual de anúncios publicitários. E mais, num registro
completamente diferente, nós a utilizamos para guardar a lembrança emocionada de acontecimentos
íntimos e para, de alguma maneira, ilustrar nossa própria história, num quadro que se convencionou
chamar “álbum de família”. Consagrada como obra de arte, ela ganha, cada vez mais, espaços nas
galerias e museus, ao lado de pinturas e outras formas de arte contemporânea. Espécie de Oitava
Arte , ela é alvo de comentários e críticas da imprensa escrita e audiovisual, mas, também, de
estudos aprofundados sob diversos ângulos: históricos, sociológicos, estéticos, semiológicos. 
A fotografia é plural e suas abordagens são igualmente múltiplas. Do simples inventário
cronológico de fotógrafos ou de estilos de fotografar pode-se passar a digressões muito complexas,
de inspiração teórica. Para além do discurso estético que, no mundo da fotografia, tende a
privilegiar toda a manifestação de caráter criativo e a se interessar por todas as formas e sua
evolução, ligando-a a diferentes tradições visuais, uma sociologia da fotografia repousa sobre o
estudo dos diferentes contextos (históricos, sociais, econômicos) da fotografia; quanto à semiologia,
ela permite encarar a fotografia como mensagem, desmontando seu processo de comunicação e os
códigos aí investidos. 
Mas como toda a forma de arte e de literatura, como todo o texto, a imagem fotográfica só existe
plenamente se for investida por um leitor que lhe dê uma interpretação, operando desta maneira,
uma re-criação, uma re-escritura . Tal valor agregado é igualmente tributário de um contexto no
qual a fotografia é olhada e lida. Uma mudança de contexto equivale a uma mudança de
interpretação e de leitura. 
MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE.
28No espírito de muita gente, a fotografia está associada à idéia de documento . Quer dizer: ela serve
para testemunhar uma realidade, e em seguida, para lembrar a existência desta mesma realidade. O
tempo tem aqui um papel fundamental, em particular, do ponto de vista histórico e emocional,
quando a fotografia é testemunha de mudanças, de transformações físicas e materiais, de
desaparecimento de coisas ou de morte de entes queridos. Na palavra documento há também, de
forma difusa, a idéia de singularidade. Explico: a fotografia testemunha de maneira única e própria.
Ela tem mais crédito do que o texto escrito e é tão importante quanto única. 
Associada, por exemplo, às grandes viagens do século XIX, ela se constituiu num novo instrumento
de descoberta do mundo; depois, cada vez mais aperfeiçoado, este instrumento informava
visualmente e contribuía para o conhecimento e para a compreensão dos fatos. Primeiro como
substituta do caderno de desenhos do viajante, depois associada à exploração científica, a fotografia
deu a volta ao mundo. Geógrafos e etnógrafos passaram a considerá-la como um documento
objetivo, despido de emoções. Claude Lévy-Strauss deixou de sua estadia na África e no Brasil um
importante documentário com este sabor. Acompanhada de notas dos escritores, a fotografia
permite, muitas vezes, mostrar uma imagem precisa, despida de detalhes que precisam, muitas
vezes, de páginas e páginas de descrição. Paralelamente, ela também irá servir para inventariar
nosso patrimônio histórico assim como para alimentar o que os americanos batizaram de “street
photography”, ou fotografia das ruas: a rua torna-se, deste ponto de vista, o teatro no qual se
desenrolam dramas alegres ou tristes, fascinando o espectador fotógrafo. Isto, sem contar a
contribuição do fotojornalismo, iniciada em 1855 durante a Guerra de Secessão, nos EUA,
fotojornalismo a que se atribui a faculdade de mostrar uma ação na sua mais imediata consecução. 
Podemos pensar que a fotografia nos mostra uma certa imagem do real e não a realidade, pura e
simples? Sim. Existe uma ampla discussão sobre a objetividade fotográfica. Cada vez mais os fatos
são manipulados pela imprensa, ou recuperados sem autorização do fotógrafo, servindo a tal e qual
causa, reforçando a crítica a determinado fato ou personagem político. A fotografia, na maior parte
das vezes, serve para condenar conflitos: no caso da Guerra do Vietnã, por exemplo, ela foi de
fundamental importância para mudar o rumo da opinião pública americana sobre o engajamento do
país, numa luta tão sangrenta. A tal ponto que, durante a Guerra do Golfo, em 1991, um forte
controle foi exercido sobre as atividades da imprensa que cobriam, in loco , o conflito. Não se
exibiam, por exemplo, os ataúdes de soldados americanos mortos em combate. Durante a Guerra do
Paraguai, outro exemplo, fotos de membros da família imperial em meio ao campo de batalha foram
MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE.
29manipuladas para aparecer na imprensa brasileira, como mostra Joaquim Marçal em suas pesquisas.
Partindo do princípio de que uma fotografia pode “incomodar”, sob o pretexto de que ela revela
coisas embaraçosas, é preciso, portanto, se interrogar sobre qual o poder de uma imagem. Qual seja
a resposta a esta questão, constatamos também que inúmeros procedimentos técnicos estão à
disposição do fotógrafo para criar ou reforçar o sentido desta mesma imagem: teleobjetivas, lentes
especiais como a grande angular, planos e contra-planos etc... Os meios são infinitos, à condição de
saber usá-los corretamente, dando-lhes uma função e um significado precisos. 
Do ponto de vista das Ciências Humanas, a fotografia, em suas diferentes formas, pode fornecer
informações importantes sobre fatos históricos e, mais amplamente, ajudar a compreensão da
evolução de uma sociedade. O retrato, em particular, gênero que se tornou uma prática fotográfica
importante, informa sobre os diferentes indivíduos que constituem um grupo social ou uma classe,
sobre seus hábitos de vida e sua postura. Alguns fotógrafos buscam, também, ultrapassar a vocação
documental ou funcional da fotografia, bem como a representação de uma “imagem” social ou de
celebridades, para se interessar por anônimos, por desconhecidos, sem pertença a nenhuma classe
ou categoria específica. O gênero evoluiu e se diversificou e a maneira de fotografar as pessoas
mudou. Houve razões técnicas para isso, notadamente no século XIX. O foco e a revelação, assim
como a iluminação, não eram os mesmos, e seu aperfeiçoamento influiu sobre a prática fotográfica. 
Mas o contexto artístico, social e midiático também influencia e determina as diferentes aplicações
possíveis da fotografia. Trata-se sempre de representar um indivíduo. Mas, além de captar a
expressão de uma personalidade, o retrato pode revelar uma atividade profissional particular e, mais
exatamente, as relações entre a imagem e o que sabemos sobre o fotografado. “Numa determinada
época, as pessoas eram assim; viviam, assim”. A fotografia constata e revela, sem artifício. O
personagem foi captado, num momento de sua vida, pelo fotógrafo, em sua atividade. Ao
“congelar” um instante da vida, o fotógrafo, por sua vez, coloca em evidência o antes e o depois da
vida de uma pessoa. E a fotografia também nos incentiva a adivinhar aquilo que está fora do cenário
fotografado, do campo visual do fotógrafo. E uma das qualidades da imagem fotográfica reside
precisamente neste poder de evocação, no fato de que ela pode suscitar, naquele que observa, o
desejo de conhecer mais, de imaginar, de reconstituir interiormente, a partir da visão de um destes
momentos, o conjunto de uma vida. A partir da observação de fotografias, algumas questões podem
ser colocadas para que os professores tentem responder, junto com seus alunos: Quem está
MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE.
30representado? Por quê? E como? É a fotografia funcionando como objeto de memória. 
Bibliografia 
BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie . Paris, Gallimard, 1980. 
BAURET, Ganriel. Approches de la photographie . Paris, Nathan, 1992. 
BOURDIEU, Pierre. Un art moyen. Essai sur les usages sociaux de la photographie . 
FREUND, Giséle. Photographie et sociétè. Paris, Seuil, 1974. 
MARÇAL, Joaquim. His tória da foto-reportagem no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 2004. 
Nota: a autora é Historiadora e escritora. 

Um comentário:

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